Com fachada para a rua de Serralves, e entrada principal da propriedade onde se insere pela avenida Marechal Gomes da Costa, a Casa de Serralves é um exemplar significativo do estilo art déco. Foi projectada e edificada nas imediações do Porto, entre os meados dos anos 20 e os meados dos anos 40 do século XX.
A obra nasceu do sonho de Carlos Alberto Cabral, 2º Conde de Vizela e industrial nortenho abastado. Contactos frequentes com outras paragens da Europa haviam-lhe desenvolvido um gosto porventura mais requintado e mais moderno que o dos cânones vigentes, à época, em Portugal.
Em 1923, herdou da família a quinta do Lordelo, situada no lugar de Serralves, propriedade que alargou por compras e permutas, nos anos subsequentes, em direcção ao mar e ao rio Douro, até atingir dimensões próximas do actual.
Carlos Alberto Cabral terá projectado uma moradia para Blanche Daubin, sua futura esposa, e para si próprio, no que fora quinta de veraneio da família: uma nova casa, construída de novo, no lugar onde existira a anterior habitação; um novo parque, envolvendo a casa, sobrepondo-se e pontualmente absorvendo a paisagem do anterior jardim, e estendendo-se a uma área rural confinante, numa alegoria naturalista do viver campestre.
O 2º Conde de Vizela veio habitar a casa com Blanche Daubin em meados dos anos 40. A casa, aberta aos jardins e à luz exterior, comporta, no piso térreo, espaços refinados e convidativos para a festa e o encontro social. No primeiro andar, os espaços íntimos criam um cenário de luxo e requinte. No entanto, o Conde terá vivido aqui relativamente afastado do convívio social e acabaria por vender a propriedade, no início dos anos 50, por dificuldades financeiras. Delfim Ferreira, Conde de Riba d’Ave, também ele industrial têxtil, adquiriu-a aceitando a condição de que a propriedade não seria alterada nem desmembrada.
Autoria do projecto
A autoria do projecto arquitectónico da moradia é controversa. Sabe-se que o nome de Marques da Silva, afamado arquitecto do Porto de então, esteve estreitamente associado à obra, ao longo de todo o seu percurso, embora o cunho dos seus trabalhos de referência seja diferente do gosto patenteado em Serralves. Mas, sabe-se também que terão sido decisivos, para o traçado geral da moradia, os desenhos e alçados do arquitecto francês Charles Siclis, conservados no arquivo da Fundação, nos quais se reconhece a casa efectivamente construída.
Acresce a intervenção dos arquitectos e decoradores da casa Ruhlmann, a quem foi confiado o projecto de interiores e que por essa via terão induzido adaptações exteriores. A articulação dos vários intervenientes terá sido gerida pelo próprio Conde de Vizela, cujo gosto, enquanto encomendador da obra, terá marcado os longos anos da construção e as sucessivas adaptações do projecto.
Eurico Cabral e Mário Cabral, sobrinhos do Conde de Vizela, recordam essas decisões do tio e a sua atitude face à obra:
"O interior é fundamentalmente desenhado pelo Jacques Ruhlman que é um dos grandes mestres dos móveis franceses e da arquitectura de interior.”
"O meu tio tinha uma coisa muito especial... é que ele reunia muitos arquitectos, reunia os decoradores, reunia as pessoas mas tinha sempre a última palavra a dizer.”
O edifício está implantado no terreno segundo uma orientação aproximada de Noroeste-Sudeste e em profunda articulação com o jardim. A partir deste, circulando a casa por trás, pode observar-se a extensa fachada, que abre à rua de Serralves a entrada principal, por detrás de um alargamento semicircular do muro exterior e sob uma pala de vidro. Há ainda uma entrada lateral, através de um pátio encastrado entre o edifício principal e o da capela.
Do lado da rua, o edifício toma uma aparência sóbria e relativamente fechada ao exterior. Inversamente, a fachada voltada ao jardim abre-se em largas ou longas janelas de forma rectangular, que acompanham o ritmo das próprias linhas de geometria severa, definidoras da forma e da volumetria do edifício. No seu todo, a casa testemunha o estilo art déco, cuja voga se inicia com a Exposition des Arts Décoratifs et Industriels Modernes de 1925, em Paris. No dizer de Eurico Cabral, sobrinho do Conde de Vizela:
" Ele foi em 1925 à célebre exposição de artes decorativas de Paris. Aí começou a ter contactos com vários grandes artistas franceses entre eles Jacques Grébér que é o paisagista do jardim”
A capela foi recoberta com um forro exterior que a integra visualmente no conjunto da casa. De facto, é uma capela do séc. XIX que o proprietário entendeu preservar, conforme recorda Mário Cabral, um dos herdeiros da família:
" A capela não foi deitada abaixo; foi envolvida. Toda esta parte onde está a capela foi construída sobre o que existia. A capela foi metida, inserida lá dentro, aliás está como era; é uma capela do século XIX. É uma capela que tinha bastante culto, as pessoas daqui à volta vinham à missa e eu penso que ele ficou um pouco influenciado por isso também e que não quis deitar a capela abaixo. E portanto aquilo foi toda uma ideia geral entre ele e todos os arquitectos de envolverem... uma das coisa engraçadas é a maneira como eles fizeram a cruz; a cruz é muito o desenho do Ruhlman...... o que é uma coisa espantosa.”
O interior do edifício desenvolve-se em três pisos: um piso enterrado, que alberga a cozinha, a despensa e os locais de serviço; um piso térreo, onde se encontram todas as salas de estar, de jantar, átrios e biblioteca; um primeiro piso, que corresponde à zona privada. O visitante provindo da rua pela entrada principal, relativamente obscura, teria uma primeira percepção da estrutura da casa e da sua relação com o jardim, a partir do imponente hall central de duplo pé direito. Olhando em frente, através da vasta janela exterior, vislumbra-se o parterre central e o parque. Voltando à direita, contempla-se o vasto salão que se prolonga, através da janela, no parterre lateral.
A zona íntima da casa adivinha-se mais do que se vê, através da galeria que no piso superior contorna este átrio. À esquerda, vencendo-se um pequeno desnível, abre-se a notável sala de jantar, debruçada sobre o jardim e, do outro lado e voltada à rua, a sala de bilhar. Para lá delas, um portão de ferro forjado, da autoria de Edgar Brandt, separa desta zona social as zonas mais íntimas da casa: o andar superior, mas também a biblioteca e áreas de serviço ainda no piso térreo.
A arquitectura de interiores e decoração da casa fazem dela talvez o mais notável exemplar de árt déco em Portugal. Tardia, face à cronologia de referência desse estilo, na Europa, ela explica-se pelo percurso e pelos contactos do proprietário e também pela morosidade de construção da obra. De facto, o 2º Conde de Vizela tomou contacto com os cânones desse estilo em França, onde residiu, tendo mesmo estado na exposição de referência da art déco, em Paris, em 1925. Na sequência, chamou à consecução do seu projecto alguns dos nomes mais notáveis, no panorama artístico internacional de então.
A Émile-Jacques Ruhlman se deve a concepção da sala de jantar, do hall, do salão, do vestíbulo e da sala de bilhar. Alfred Porteneuve, provindo do mesmo atelier, terá dado a Serralves o seu carismático tom rosa. A grande clarabóia do tecto do hall do primeiro andar, é de René Lalique.
Do espólio actual da Fundação consta apenas uma pequena parte do mobiliário original da casa, por ter este sido vendido em leilões e assim se ter dispersado, antes da aquisição da propriedade pelo Estado português. Excepcionam-se: a mobília de sala de jantar (re-adquirida pela Fundação) e o equipamento de arquitectura de interiores (portas, armários embutidos, puxadores, mobiliário das casas de banho, etc.). O restauro da casa, conduzido pelo arquitecto Álvaro Siza, soube preservar com rigor estes últimos.
Parte do mobiliário da casa terá sido adquirida aos grandes decoradores da época, tendo algumas das peças vindo da residência do Conde em Biarritz. Todavia, a estas juntaram-se peças antigas que herdara da família, gerando um todo algo eclético.
Ruhlmann e Leleu foram autores de algumas das peças do mobiliário e Silva Bruhns concebeu tapetes para a casa. Edgar Brandt o portão de ferro forjado do hall e alguns dos apliques. Jean Perzel os candeeiros. São ainda de salientar algumas peças de requintado gosto na decoração da casa: por exemplo, os pisos em pedra de lioz e os soalhos de madeiras exóticas; as casas de banho forradas a mármore, com banheiras cavadas na pedra; o geometrismo dos estuques; ou a curvatura da escada da biblioteca.
Situada num ponto mais alto do terreno, a casa como que preside ao jardim que se lhe abre defronte e lateralmente. Partindo do seu lugar de implantação, desenha-se um longo eixo longitudinal que se prolonga até ao lugar do tanque, no outro extremo da propriedade. Defronte da casa, o parterre central estabelece um elemento de continuidade entre as linhas geometrizadas do edifício e a sobriedade do seu próprio desenho.
Num ângulo de noventa graus com o eixo central definido pelo Parterre central, desenha-se um outro eixo, menor, marcado pela longa álea de liquidambares. Esta leva a uma clareira octogonal que abre à rua a entrada nobre da propriedade. Em sentido contrário, pode imaginar-se o trajecto do visitante, da rua até ao edifício.
Do lado oeste, a grande porta janela do salão do piso térreo abre-se ao parterre lateral, sugerindo a continuidade dos espaços interior e exterior.
Se, no piso térreo da casa, o jardim é omnipresente através das vastas janelas, já subindo as escadas, ou das janelas do piso superior, se desfruta de uma visão panorâmica do parque, que permite uma melhor apreensão dos espaços e da sua inter-relação.
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